Friday, January 05, 2007

hoje

sem que ela percebesse, ele a olhou atenciosamente. do outro lado da mesa, ela continuava exatamente como a primeira vez que ele a vira. falava alto, gesticulava muito e vez ou outra, ria o riso que só se encontra em crianças. o riso sincero de quem não tem medo de abrir a boca como se quisesse engolir o mundo. e talvez ela engolisse mesmo. ele aprendera a não duvidar dela.

falava com propriedade, fazia-se escutar. e ao perceber isso, ele se lembrou que fora exatamente isso que o encantou. como um ditador, ela tinha a capacidade de calar qualquer discurso para se fazer ouvida, mas não por imposição ou autoritarismo. o fato é que parecia que o mundo tinha vontade de parar para ouvi-la. ele, inclusive. mas não hoje.

hoje o riso não contaminava, os gestos não hipnotizavam e embora o mundo inteiro pudesse querer escutá-la, ele preferia ouvidos de mercador. perguntava-se como teria acontecido. ela perdera o viço, o gosto, a graça, embora ele relutasse em admitir. era como se a presença dela ali fosse um estorvo, uma cicatriz que o lembrasse de um passado ao qual ele não podia, não queria ou não devia voltar. uma felicidade que ficara no tempo e -deus!- como valera a pena! mas não hoje.hoje os olhares são frios e os sorrisos, amarelos. os abraços não querem dizer nada. hoje se beijam como quem toma a bênção. hoje o encanto acabou.

de seu lado da mesa, ela percebe o olhar dele. educada, finge não ver. vira-se discretamente para um plano onde os olhos dele não a alcancem. derrama uma lágrima de saudade. não dele, mas da mulher que foi embora. melhor dizendo, da mulher que estava ali,mas que ele já não via. a mulher do encanto. a mulher do ontem.hoje, não.