Sunday, July 23, 2006

ponto final


ela sempre se sentiu um pouco ridúcula por ainda depender de ônibus. tudo tem que ser muito programado; sair de casa quinze minutos antes do horário, chegar no ponto, esperar, tolerar atrasos... uma pequena reunião do tipo de coisa que ela não planejava ter que lidar na vida adulta. mas planos são apenas planos. ela estava ali, mais uma vez, esperando há mais de vinte minutos, por conta de uma troca de horário não notificada.surpreendentemente, manteve o humor.era manhã ainda, talvez fosse por isso. agora era só bom.

era uma daquelas raras pessoas que tomavam- e realmente apreciavam- água com gás. comprava uma destas no bar em frente ao ponto, quando através dos seus grandes óculos escuros ela o viu, do outro lado da rua. fingiu não ver, primeira reação. meio instante depois, acalantada pelo passar do tempo desde a última vez que se viram,direcionou seu olhar a ele. ele acenou e deu aquele sorriso familiar. agora era só bom.

sentindo-se em casa com aquela expressão, ela atravessou a rua e sentou-se ao lado dele. tempos atrás, seria atropelada por uma maré de sentimentos incontroláveis. falaria sem parar, calaria ou tremeria da cabeça aos pés, rezando a deus para que soasse natural em algum momento. agora podia olhar nos olhos dele sem querer desviar o olhar. agora podia dizer que o tempo lhe havia feito bem sem medo de soar convidativa. agora era só bom.

falavam sobre a vida e os caminhos onde foram parar. sobre o que têm feito e o que pretendem fazer em breve. falavam sobre cada um e não tinham mais medo de reavivar memórias do "a gente" que já havia existido ali. falavam, apenas. e se escutavam , com a expressão da criança que ganha um presente de surpresa. agora era só bom.

ela não se questionava por quê eles não ficavam juntos. ele não se sentia mal por nunca tê-la amado. tudo isso que já foi tão presente em cada encontro deles diluía-se agora no sorriso mútuo que dizia, tranqüilo e em silêncio : "é bom te ver". bom; e não mais tenso, não mais triste, não mais uma possibilidade, não mais uma chance; nada. agora era só bom.

o ônibus chega, poltronas distantes. despedem-se rindo de algum comentário engraçado que algum deles tenha feito, ou talvez por estranharem aquele tipo de bem estar nunca antes experimentado entre eles. o bem estar de ver a outra metade do "nós" sabendo que nunca mais seriam senão, cada um deles, um "eu". e não doía. agora era só bom.

quando não existe mais a possibilidade do amor, vão-se embora com ele todas as fontes de sofrimento. não existe mais ansiedade, medo, ciúme, insinuação, tensão, nada. a vontade do beijo, do toque, do fundir dos corpos dá espaço a um afeto que só pode ser construído na solidez do " a gente" que existiu outrora. fica só o que foi bonito. fica quando foi de verdade.fica só o que foi bom. agora é só bom.